Entre o vício e o jogo responsável: uma reflexão para apostadores
A recente instauração da CPI das “Bets”, no Congresso Nacional, trouxe à tona questões sensíveis relacionadas à integridade esportiva, publicidade e às boas práticas operacionais no setor, evidenciando a necessidade de medidas que conciliem o crescimento do mercado com a promoção do jogo responsável, sem criminalizar o entretenimento nem negligenciar os riscos associados ao uso compulsivo das plataformas. Nesse contexto, um dos pontos mais relevantes que vem ganhando destaque junto à adaptação do setor regulamentado diz respeito à ausência de um protocolo claro e coordenado sobre como lidar com jogadores em situação de risco patológico, especialmente nos casos de ludopatia, também conhecida como transtorno do jogo ou jogo patológico.
A ludopatia é considerada um transtorno psicológico, classificada no DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual Disorders) como “Gambling Disorder”. Trata-se de uma condição impulsiva e incontrolável de apostar, mesmo diante de consequências negativas na vida pessoal, profissional ou financeira. Em muitos casos, o quadro pode estar associado a outras condições mentais, como ansiedade, depressão ou bipolaridade, o que reforça a importância de medidas que ajudem o próprio apostador a perceber sinais de risco e buscar suporte, quando necessário. Trata-se, portanto, de uma condição de natureza médica, cuja avaliação clínica especializada é recomendada e cuja prevalência, embora relativamente baixa, estimada entre 0,12% e 5,8% da população (leia mais sobre isso aqui), precisa ser considerada na formação de estratégias voltadas ao consumo responsável do entretenimento.
Do ponto de vista jurídico e operacional das plataformas, a caracterização da ludopatia impõe dilemas importantes. A aposta, em sua essência, é uma atividade volitiva e contratual, que pressupõe autonomia da vontade, capacidade civil e discernimento por parte do usuário. Entretanto, diante de situações em que há indícios de compulsão, diagnosticada clinicamente ou identificada a partir de condutas objetivas, tanto pelo operador quanto pelo usuário, surgem questões sobre a validade do consentimento dado e, mais ainda, sobre o dever de agir das plataformas na contenção de comportamentos potencialmente autodestrutivos.
Nesse contexto, a função do jogo responsável não se limita à prevenção genérica de vícios. Trata-se de uma política institucional que demanda ações concretas, recursos tecnológicos eficazes, mecanismos de triagem de risco, suporte ao usuário, políticas de jogo responsável e em alguns casos, medidas preventivas que limitem o acesso do próprio apostador à plataforma, em nome da preservação de sua integridade psíquica.
A delimitação entre o uso saudável e o uso patológico de uma plataforma de apostas é complexa de ser traçada, pois não se baseia exclusivamente no volume financeiro movimentado, mas também no padrão comportamental e nos impactos concretos da atividade na vida do apostador. Apostadores recreativos, ainda que recorrentes, costumam manter controle sobre seus gastos, definem limites de tempo e valor e não negligenciam suas obrigações pessoais ou profissionais. Por outro lado, sinais como tentativas repetidas de recuperar prejuízos na própria plataforma, ocultação
de gastos, uso de recursos destinados a despesas essenciais (como alimentação ou moradia), sentimento de culpa após apostar, irritabilidade quando impedidos de jogar, entre outros, são elementos indicadores de risco associados ao quadro de ludopatia.
Os operadores mais alinhados com os padrões ideais de políticas de jogo responsável vêm implementando filtros automatizados baseados em critérios objetivos, como aumento repentino no tempo de sessão, variações abruptas de valor médio por aposta, tentativas de reativação após autoexclusão, entre outros. Esses parâmetros, em muitos casos, acionam protocolos internos de exclusão temporária, bloqueios preventivos, alertas personalizados ou até mesmo encaminhamento a entidades especializadas.
No mesmo sentido, muitos operadores com políticas sólidas de jogo responsável adotam o método de perguntas reflexivas para que o próprio apostador avalie seus hábitos de forma autônoma. Questionamentos como “Você já gastou mais do que podia”, “Tentou esconder o valor apostado de entes familiares?” ou “Sentiu irritação ao não conseguir jogar?”, ao identificar padrões de risco de forma sutil e preventiva também auxiliam no autodiagnóstico, que apesar de não dispensar consulta especializada, fortalece a adoção de medidas de autoexclusão e autolimitação do usuário.
Importante destacar que a Portaria SPA/MF nº 1.231/2024 já estabelece diretrizes mínimas obrigatórias para os operadores licenciados, como a disponibilização de mecanismos de autoexclusão, limitação voluntária de depósito e tempo de uso, canal de suporte psicológico e relatórios transparentes sobre o histórico de apostas. Tais medidas, reforçam a segurança jurídica da operação e evidenciam a responsabilidade institucional na gestão do comportamento de risco, como mencionado anteriormente. Nesse sentido, a conduta dos operadores deve ser pautada pela razoabilidade e proporcionalidade. Por exemplo, a suspensão da conta de um usuário, por parte do agente operador, que apresenta alto risco de patologia, configura medida de proteção alinhada às boas práticas de jogo responsável, compatível com os deveres de cuidado e diligência previstos na legislação
É justamente por isso que certos operadores mantêm parcerias com entidades especializadas, como a Instituto de Apoio ao Apostador (IAA) que atua com atendimento terapêutico, consultoria financeira, orientação familiar e diversos outros mecanismos de auxílio. Ao criar pontes com redes de saúde mental, a plataforma não apenas mitiga riscos para seu usuário, como valoriza a reputação de seu mercado promovendo um ambiente de entretenimento mais saudável.
Ao apostador que reconhece estar enfrentando dificuldades para controlar suas atividades e impulsos em relação ao jogo, o primeiro passo é buscar ajuda tanto nas ferramentas disponibilizadas pela própria plataforma quanto junto a profissionais especializados. Os operadores autorizados contam com os mecanismos de autoexclusão, limites de tempo e de valor, pausas programadas entre outros. Caso os sinais de compulsão persistam, é altamente recomendado procurar suporte clínico com psicólogos ou psiquiatras, bem como grupo de apoio especializados. Assumir o problema representa um exercício de autonomia, e não de fraqueza.
O jogo responsável, nesse sentido, não é apenas uma diretriz normativa, mas um instrumento de conformidade ético de longo prazo para um setor que precisa demonstrar maturidade institucional. A construção de um ambiente digital consciente, com proteção real ao usuário e mecanismos de intervenção eficazes, é o que permitirá que o mercado de apostas de quota fixa continue sendo, acima de tudo, uma forma legítima de entretenimento, e não um risco à saúde pública.
Udo Seckelmann¹
¹ Advogado. Head do Departamento de Apostas e Criptoativos do escritório Bichara e Motta Advogados. LLM em Direito Desportivo Internacional pelo Instituto de Derecho y Economía (ISDE) em Madri, Espanha. Professor da CBF Academy. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Labs). Membro da Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB/RJ.
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