Jurista reflete sobre varejo e apostas causarem impactos semelhantes na população
A relação entre o varejo e o setor de apostas, que recentemente se colocaram como rivais no Brasil, vai além do consumo e do entretenimento: ambos compartilham a capacidade de gerar impactos significativos na saúde financeira e mental dos consumidores. Enquanto as apostas são frequentemente associadas ao risco de vício e endividamento, o varejo também promove comportamentos compulsivos, estimulados por estratégias de marketing agressivas e facilidades de crédito. Em artigo escrito no site Lei em Campo, o jurista Rafael Marchetti Marcondes, Diretor jurídico do Instituto Brasileiro pelo Jogo Responsável (IBJR) e Presidente da Associação Brasileira de Fantasy Sport (ABFS), compartilhou reflexões sobre quão parecidos podem ser esses dois setores.
Confira abaixo, na íntegra, o artigo escrito por Rafael Marchetti Marcondes no Lei em Campo:
Varejo e Apostas: dois lados de uma mesma moeda em saúde financeira e mental
As apostas e o varejo, embora operem em contextos diferentes, compartilham características comuns que podem gerar efeitos colaterais negativos para a população, tanto em termos de saúde mental quanto financeira. A sociedade frequentemente associa as apostas a riscos de vício e danos econômicos, mas muitas vezes ignora que o setor de varejo pode provocar problemas similares.
Assim, é importante explorar as semelhanças entre ambos os setores, destacando os efeitos colaterais nocivos que eles podem causar, e refletir sobre o papel que o Estado deve desempenhar para mitigar esses impactos, sem cercear as liberdades individuais.
Efeitos nocivos das apostas e do varejo
Apostas e compras podem ser fontes de prazer e entretenimento, mas, quando feitas em excesso, ambas podem desencadear compulsões com graves consequências para o bem-estar mental e financeiro. No caso das apostas, há um consenso sobre os riscos de dependência, com estimativas indicando que entre 1% e 2% da população mundial sofrem de transtorno de jogo patológico. Este vício pode resultar em problemas como endividamento severo, rompimento de relações pessoais e até questões legais.
De forma semelhante, o varejo também pode gerar comportamentos compulsivos, especialmente no contexto de consumo excessivo. Estudos apontam que cerca de 5,8% dos consumidores americanos sofrem de “Compulsive Buying Disorder” (CBD), que é o transtorno de compra compulsiva. Esses indivíduos gastam de maneira descontrolada, o que frequentemente resulta em dívidas altas, uso irresponsável de cartões de crédito e, consequentemente, estresse financeiro.
Um dado alarmante indica que 93% das pessoas com problemas de saúde mental têm mais probabilidade de gastar excessivamente durante crises emocionais. Este comportamento reflete o uso das compras como mecanismo de enfrentamento para sentimentos de ansiedade ou depressão, levando a uma espiral de consumo desnecessário que pode agravar tanto os problemas financeiros quanto os psicológicos.
Eventos de varejo como a Black Friday e grandes promoções contribuem para o consumo desenfreado, onde o apelo publicitário e as facilidades de crédito incentivam as pessoas a gastar além de suas possibilidades. Dados apontam que consumidores americanos gastaram mais de US$ 9 bilhões online apenas durante a Black Friday de 2020, um exemplo claro de como o marketing agressivo do varejo pode levar ao consumo compulsivo.
Os juros cobrados pelos cartões de crédito no Brasil são dos mais altos do mundo, com taxas que podem ultrapassar 300% ao ano. Este fator contribui significativamente para o endividamento da população, visto que muitas pessoas recorrem ao crédito rotativo ou parcelamentos para financiar compras impulsionadas por campanhas de marketing agressivas e promoções. Muitos varejistas oferecem cartões próprios, facilitando o acesso a crédito e fomentando o consumo.
As facilidades oferecidas pelo varejo, como o parcelamento sem juros, muitas vezes mascaram os verdadeiros custos das compras, levando os consumidores a um falso senso de controle financeiro. Quando os clientes não conseguem quitar o valor total da fatura, entram no crédito rotativo, cujas taxas elevadíssimas podem transformar pequenas compras em grandes dívidas. Ainda assim, não se cogita proibir o uso do cartão de crédito no varejo, assim como acaba de ser feito com relação às apostas, mercado no qual o cartão era responsável por menos de 1% do volume das transações realizadas.
Dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) – que atualmente pleiteia no Supremo Tribunal Federal a criminalização das apostas – mostram que, em fevereiro de 2023, 78,3% das famílias brasileiras relataram estar endividadas, e o cartão de crédito foi o principal meio utilizado para essas dívidas. Esses números indicam que o consumo no varejo, quando mal administrado, pode gerar um ciclo de dependência e endividamento profundo, agravando problemas de saúde financeira e mental, até mais nocivos do que os encontrados nas apostas.
Comparação e reflexão
Embora as apostas sejam vistas de maneira mais negativa pela sociedade, é essencial reconhecer que o varejo, com suas práticas de marketing, também pode criar um ambiente de dependência e endividamento. Em ambos os casos, o vício pode resultar em sérias consequências pessoais, incluindo o comprometimento de relações familiares e a deterioração da saúde mental.
A chave para resolver ambos os problemas está na educação e na informação. Os consumidores e jogadores precisam ser conscientizados sobre os riscos envolvidos em suas decisões, seja no ato de comprar ou de apostar.
A regulação governamental deve, principalmente, focar em informar as pessoas sobre os perigos do consumo excessivo e das apostas descontroladas. Dessa forma, o Estado pode criar políticas públicas que protejam os indivíduos, sem interferir diretamente em suas liberdades de escolha. Cabe a cada cidadão, munido de informações adequadas, fazer escolhas responsáveis e conscientes sobre como gastar seu dinheiro, seja em compras ou apostas.
Rafael Marchetti Marcondes
Disputa de mercado
A relação entre o varejo e o setor de apostas é mais complexa do que parece à primeira vista, e o que muitas vezes é apresentado como uma crítica moral ou social às apostas, na verdade, esconde uma disputa de mercado. O ataque ao setor de apostas, promovido principalmente por representantes do varejo e do mercado financeiro tradicional, nada mais é do que uma tentativa de proteger seus próprios interesses. Essa competição se dá porque o público que aposta é, em muitos casos, o mesmo que consome produtos do varejo. Trata-se de uma sobreposição de mercados que ameaça o domínio que esses setores exercem sobre o comportamento de compra da população.
No caso das apostas, o foco está quase sempre nos riscos de vício e no potencial de endividamento. Entretanto, é curioso como essas mesmas críticas raramente são aplicadas ao varejo, que também se utiliza de mecanismos poderosos para incentivar o consumo compulsivo. Estratégias e promoções tentadoras, além da facilidade de acesso ao crédito são instrumentos que, assim como as apostas, podem levar a um ciclo de endividamento profundo.
O ponto aqui é claro: a resistência ao crescimento do setor de apostas não é apenas uma preocupação com o bem-estar do consumidor, mas uma defesa de mercado. O varejo e as instituições financeiras, historicamente dominantes, veem o setor de apostas como um concorrente que pode dividir a atenção – e o dinheiro – de seus clientes. O consumidor que gasta em apostas é o mesmo que poderia estar gastando em compras de produtos ou investindo em outros setores do mercado financeiro.
A indústria varejista, mesmo diante dos evidentes problemas que provoca, como o endividamento em massa e o estresse financeiro, continua intocada. O mesmo consumidor que pode se endividar ao parcelar compras com juros altíssimos é bombardeado por campanhas publicitárias que estimulam esse comportamento. No entanto, quando o assunto é apostas, o tom muda, e o foco está sempre nos riscos, como se o problema não fosse o mesmo. Esse tipo de cenário nos leva a uma reflexão sobre como diferentes setores do mercado utilizam sua influência para moldar a percepção pública e manter uma reserva de mercado.
A demonização das apostas é, em grande parte, uma estratégia de mercado dos concorrentes que querem manter o controle sobre o comportamento financeiro dos consumidores. Assim, ao atacar o setor de apostas, varejo e finanças tradicionais estão, na verdade, protegendo seu próprio espaço, sem oferecer uma verdadeira solução para o problema do consumo compulsivo e do endividamento. Essa disputa por mercado, portanto, não se resume a uma questão de moralidade ou proteção do consumidor, como muitas vezes é apresentada. Trata-se de uma luta por atenção e poder financeiro, onde os maiores players buscam garantir que o consumidor continue gastando, mas preferencialmente em suas plataformas, produtos e serviços.
Escrito por Sérgio Ricardo Jr.