Imprensa internacional repercute influência religiosa na regulamentação das apostas no Brasil
A influência da religião na regulamentação das apostas no Brasil é um fenômeno complexo. Com a maioria da população identificando-se como cristã, as crenças religiosas desempenham um papel significativo na formulação das políticas públicas, especialmente no que diz respeito aos debates históricos a respeito da legalização das apostas e dos jogos de azar. O fenômeno, inclusive, foi pauta de uma matéria publicada no site IGB Business, que explora como a ascendência do movimento evangélico, aliada a argumentos baseados em convicções religiosas, têm moldado o debate político sobre o assunto no Brasil.
Confira abaixo uma versão traduzida da matéria publicada pelo site IGB Businnes sobre a situação das apostas no Brasil:
Brasil: Como a religião influencia a regulamentação das apostas?
Na América Latina, surpreendentemente, nenhum país tem uma religião oficial do Estado. No entanto, muitos associam denominações cristãs à região, considerando a América Latina em geral como um sinônimo de fé. “O povo latino-americano é, em sua maioria, cristão. Na maioria dos países, esse número ultrapassa 80%, incluindo católicos e evangélicos”, diz Magno José, editor do BNLData e presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal. E de acordo com José e Hugo Baungartner, vice-presidente de mercados globais da Aposta Ganha, a religião está a ter um impacto crescente na política da região.
“Atualmente é notório a força da religião no continente e o avanço de uma influência religiosa na política institucional. E cada vez mais pessoas religiosas, sejam progressistas ou reacionárias, têm se unido para propagar seus projetos na esfera pública”, explica José. Baungartner acrescenta: “A influência [religiosa] tem crescido ano após ano com o aumento de diferentes tipos de religião. Hoje em dia eles até têm seus próprios políticos, inclusive formando grupos para exercer seu poder e influência”.
Influência nos resultados legislativos do Brasil
Poucos países da América Latina viram a influência religiosa na sua política de jogo como o Brasil, apesar de ser um país religiosamente livre. De acordo com o estudo Global Religion 2023 – realizado em 26 países – o Brasil tem o maior percentual de cidadãos que acreditam em Deus ou em um poder superior, com 89%. Previsivelmente, isto repercutiu no regime político do país.
“Nos últimos 82 anos, diversos temas geraram polêmica no Brasil e entre eles está a legalização dos jogos”, explica José. “Quem não mora no Brasil terá dificuldade em entender a falta de objetividade e bom senso dos políticos brasileiros quando o assunto é jogo. As questões religiosas acabam contaminando e distorcendo o debate”, completou.
O Brasil foi abalado pelo movimento evangélico nos últimos anos, com cerca de um terço de sua população se identificando como evangélica em 2022. Não é surpresa, então, que legisladores evangélicos se opuseram fortemente ao Projeto de Lei 3.626/2023, a tão esperada lei para regular as apostas esportivas e os jogos, quase parando completamente o seu progresso. “O país mais importante que enfrentou [oposição religiosa] foi, e será, o Brasil”, diz Felipe Fraga, especialista em América Latina. “A razão é que quando olhamos para os países mais populosos, ninguém tem mais de 20% de população evangélica. Além disso, o movimento do neopentecostalismo é muito poderoso no Brasil e as conexões políticas que eles têm são muito fortes”, completou.
Efeito não intencional do mercado negro
Como acontece com qualquer mercado regulado, permanecem preocupações sobre a presença dos mercados negro e cinza no Brasil. Para Baungartner, o aspecto religioso do argumento evangélico pode fazer mais mal do que bem a este respeito. “Dizem que [o jogo] é contra a sua fé e contra o seu Deus que, também, é contra. Eles usam isso para influenciar outros políticos. Literalmente, para eles é assunto do diabo. Eles não entendem que o mundo mudou e é melhor regulamentá-lo, em vez de ter o mercado cinza”, explica.
Fraga – ele próprio evangélico – concorda, propondo que a regulamentação salvaguardará os cidadãos brasileiros. “Eles afirmam um ponto de vista social, olhando para os riscos do vício e como isso pode afetar a sociedade, discutindo também sobre lavagem de dinheiro e manipulação de resultados. Dizem que o projeto vai permitir ou facilitar maus comportamentos e atos criminosos, o que é totalmente errado, já que a ideia de regulamentação garante para o próprio país a tributação e a segurança da sociedade. É exatamente o que a indústria procura: regras justas para continuar oferecendo formas modernas de entretenimento”, comentou.
Bem na vanguarda das crenças fortemente arraigadas do evangelicalismo sobre o jogo estão os valores familiares, de acordo com José. Ele observa que na recente Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o jogo foi classificado como trazendo “danos morais, sociais e, principalmente, familiares irreparáveis”. No evento foi ouvido o seguinte: “Um voto a favor do jogo será, na prática, um voto de desprezo pela vida, pela família e pelos seus valores fundamentais”. Mas a disputa vai além de uma perspectiva moral. Os evangélicos e outros políticos religiosos também apontam para preocupações legítimas da indústria, como a evasão fiscal – que a regulamentação naturalmente abordaria.
Um longo e sinuoso caminho para a regulamentação
A influência da religião nas leis de jogos no Brasil remonta a muito mais tempo do que nos últimos anos. O jogo foi proibido no país em 1946 devido à influência religiosa e o bingo foi legalizado entre 1994 e 2005 antes de ser novamente proibido. É por isso que a aprovação do Projeto de Lei 3.626/2023 teve uma recepção tão positiva quando foi aprovada em dezembro – demorou muito para chegar. O Brasil está atualmente em processo de regulamentação do mercado de jogos e apostas esportivas. O ministério das finanças do país, em conjunto com o regulador recém-criado – a Secretaria de Prêmios e Apostas – publicaram as regras para o mercado, que incluem a proibição de pagamentos com cartão de crédito e criptomoedas.
O Brasil poderia voltar atrás na regulamentação dos jogos de azar?
Mas aos que se alegram com a regulação do mercado, José alerta para não se acomodarem. “Há um grande risco de retrocesso”, afirma. “Não acredito que se chegue ao ponto de revogar as leis de jogo, mas os religiosos impedirão a expansão e tentarão sufocar as operações de jogo existentes. A oposição ecumênica que critica a possibilidade de legalizar o jogo deveria refletir que os benefícios positivos do jogo legal superam em muito as desvantagens propostas por qualquer pessoa ou grupo contra o jogo”, comenta José.
Baungartner insiste que, no final das contas, o jogo é um negócio e a sua aceitação em outros países neutraliza a resistência. “A mentalidade mudou ao longo dos anos”. Portanto, a revogação total pode não estar prevista, pelo menos ainda não. Enquanto a indústria girar a roda, diz Fraga, o caminho para o mercado regulador do Brasil deverá ser tranquilo. “Enquanto a indústria crescer na América Latina e mostrar que é uma parte importante da sociedade – gerando empregos, movimentando a economia, divertindo, controlando o vício, etc. – não haverá razão para revogar as leis”, afirma ele. “Mesmo que possamos considerar os riscos, nada acontecerá em breve”, completa.
Fonte: IGB Businnes
A repercussão internacional sobre a influência religiosa na regulamentação das apostas no Brasil é um reconhecimento significativo de um fenômeno que há muito tempo é observado por aqueles que acompanham de perto os debates sobre o assunto no país. Os entrevistados pelo IGB forneceram insights claros e perspicazes sobre como as crenças religiosas moldam não apenas as políticas públicas, mas também os debates políticos, especialmente em questões controversas como a legalização das apostas e dos jogos de azar.
É notável como a ascensão do movimento evangélico tem influenciado diretamente a legislação brasileira, criando obstáculos significativos para a aprovação de leis que visam regular setores que desagradam religiosamente uma parte da população. Ainda que a resistência religiosa persista, e ela vai seguir acontecendo mesmo com a indústria funcionando, confesso que foi surpreendente ver o Brasil avançar no processo de regulamentação de um setor tão polêmico como as apostas.
Assim como opinaram os ouvidos pelo IGB, penso que a única forma de contornar as constantes pressões políticas e religiosas a respeito do segmento de jogos e apostas é fazendo com que a indústria cresça e se consolide na América Latina. Apenas com a roda da indústria girando e trazendo resultados positivos para a economia do país é que será possível manter um ambiente tão delicado e sensível como esse funcionamento perfeitamente diante das pressões e das adversidades que sempre estão cercando a atividade.
Escrito por Sérgio Ricardo Jr.