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qui 15 maio/25

A consolidação jurisprudencial na limitação das contas de apostadores esportivos


Nos últimos anos, o setor de apostas esportivas no Brasil passou por um processo de transformação regulatória e econômica sem precedentes. A explosão de plataformas online, o crescimento do número de apostadores e a promulgação da Lei nº 14.790/2023 geraram um novo panorama para o mercado. Entretanto, ainda havia uma indefinição jurídica sobre um aspecto relevante da indústria: como o Judiciário brasileiro reagiria à prática de certos operadores de limitar ou bloquear contas de apostadores lucrativos.

A prática de limitação de contas, esporadicamente aplicada a usuários que demonstram alto índice de acertos ou ganhos recorrentes, era justificada pelos operadores de apostas sob o argumento de combate a fraudes, uso abusivo da plataforma ou para garantir a adoção de medidas ligadas ao “jogo responsável”. Todavia, para muitos apostadores, essas limitações representavam um obstáculo à livre contratação, interferindo de forma arbitrária na relação e sinalizando espécie de assimetria no risco do negócio.

Antes da edição da Lei 14.790/2023, o setor de apostas no Brasil operava em uma “zona cinzenta” do ponto de vista legal. A ausência de regulamentação tornava frequente a ocorrência de bloqueios, suspensões e limitações de contas sem critérios objetivos ou transparência. Apostadores que acumulavam ganhos acima da média viam suas contas subitamente restringidas, sem canais efetivos de recurso ou fundamentação técnica plausível. Com a inexistência de um marco normativo e órgãos fiscalizadores, o consumidor se encontrava em um cenário de absoluta insegurança jurídica.

Com a vigência da Lei 14.790/2023 e a edição de portarias regulamentares pela Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF), foi conferida maior clareza quanto às responsabilidades e limites de atuação dos operadores além das garantias dos consumidores. Ainda assim, a dúvida permanecia: seria lícito limitar a conta de um usuário em razão de seu histórico positivo de ganhos? Seriam essas limitações compatíveis com os princípios do Código de Defesa do Consumidor, incorporado expressamente ao setor pelo artigo 27 da referida lei?

Em vista deste cenário nebuloso, o Poder Judiciário brasileiro começou a sinalizar um direcionamento jurisprudencial claro em favor da proteção dos direitos do apostador. Duas decisões judiciais recentes, em ações movidas por apostadores contra dois operadores de apostas autorizados pela SPA/MF¹, lançam luz sobre esse cenário.

Na decisão proferida pelo TJ/SP, a alegação consistia no fato de que o apostador obtinha um lucro regular junto à plataforma de apostas esportivas. Entretanto, passado um tempo, o operador limitou sua conta, permitindo apostas até um montante de R$5,00. Diante do caso, a juíza afirmou que, embora haja previsão de medidas de promoção ao jogo responsável principalmente sob o viés da prevenção dos vícios em apostas, não há pressuposto legal que autorize a limitação de valor da aposta de forma discriminatória em relação a outros usuários. Ressaltou, ainda, que o operador não apresentou justificativa plausível para a restrição da conta do autor da ação, condenando a empresa ao desbloqueio da limitação imposta.

Já no caso decidido pelo TJ/MG, a causa foi movida devido ao encerramento da conta do autor em razão dos ganhos recorrentes deste na plataforma de apostas. Diante disso, a juíza declarou abusiva a cláusula dos Termos e Condições que permitia ao operador encerrar contas sem justificativa e determinou o restabelecimento da conta do autor, além de fixar indenização por dano moral. A magistrada afirmou que a limitação foi motivada por vitórias expressivas do autor, e não por comportamento irregular, deixando claro que o risco do negócio também é do operador, não podendo este recusar o fornecimento de seus serviços.

Essas decisões são de extrema relevância para o setor de apostas no Brasil. Ambas reconheceram que a atividade deve estar pautada pela transparência e respeito aos direitos do consumidor, não sendo admitido que o operador, de forma unilateral, limite ou exclua apostadores lucrativos, sob pena de desequilíbrio contratual.

A jurisprudência, portanto, começa a se consolidar no sentido de que o risco inerente ao negócio pertence a ambas as partes. O operador, ao ofertar seus serviços, assume a possibilidade de que alguns clientes sejam lucrativos. A tentativa de mitigar esse risco por meio de exclusão seletiva fere o princípio da boa-fé objetiva, da vulnerabilidade do consumidor entre outros, além de afrontar o artigo 39, incisos II e IX², do CDC.

A adequação do mercado pós regulamentação do setor de apostas no Brasil ainda está em construção, mas as primeiras sinalizações do Poder Judiciário apontam para a adoção de uma postura protetiva em relação ao consumidor-apostador. As sentenças analisadas abrem importante precedente para que apostadores que tenham suas contas limitadas de forma injustificada possam recorrer ao Judiciário.

Udo Seckelmann³

 

¹ Processo nº 1077331-95.2024.8.26.0100, TJ/SP; Processo nº 5009175-47.2025.8.13.0024, TJ/MG.

² Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994) II-Recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes; IX-Recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais; (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994).

³ Advogado. Head do Departamento de Apostas e Criptoativos do escritório Bichara e Motta Advogados. LLM em Direito Desportivo Internacional pelo Instituto de Derecho y Economía (ISDE) em Madri, Espanha. Professor da CBF Academy. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Labs). Membro da Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB/RJ.

 

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